Quando a “empresa cofre” deixa de proteger — e passa a colocar tudo em risco
É comum que empresários, ao buscarem proteger o patrimônio da família, abram uma “administradora de bens” ou uma holding patrimonial com a ideia de “guardar os imóveis” e afastá-los de riscos da empresa operacional.
Na teoria, parece um escudo.
Na prática, quando essa estrutura não tem governança nem atividade real, ela se torna o elo mais fraco de todo o grupo econômico.
📉 O caso real: a administradora de bens que virou alvo
Imagine a seguinte situação: uma família decide abrir uma sociedade “cofre”, apenas para concentrar seus imóveis. A empresa não tem receita, funcionários ou operação — apenas o CNPJ ativo. Três anos depois, a Receita Federal cancela o registro por inatividade.
Enquanto isso, a empresa operacional — que usava um dos imóveis “guardados” pela administradora, sem contrato formal de locação ou remuneração — entra em colapso financeiro.
O resultado?
O juiz autoriza a desconsideração da personalidade jurídica da administradora para que os bens “protegidos” respondam pelas dívidas da empresa que quebrou.
Essa medida tem nome: desconsideração inversa da personalidade jurídica.
⚖️ O fundamento jurídico
A desconsideração da personalidade jurídica está prevista no artigo 50 do Código Civil e permite que o juiz ultrapasse a “barreira” do CNPJ para alcançar os bens de outra empresa ou do próprio sócio, quando há abuso da personalidade jurídica, configurado por:
- Desvio de finalidade (uso da empresa para fraudar credores ou fugir de obrigações), ou
- Confusão patrimonial (mistura de bens, contas e operações entre empresas ou pessoas).
Quando a empresa “cofre” é usada apenas para guardar bens sem exercer atividade econômica real, a blindagem patrimonial se torna aparente.
E, diante de dívidas da empresa operacional, o juiz pode determinar que os imóveis “protegidos” sirvam à execução.
🧩 O que dizem os tribunais
A jurisprudência brasileira — especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — é firme:
não basta a existência de grupo econômico para justificar a medida, mas, comprovado o abuso, a desconsideração é perfeitamente possível.
📜 STJ – AgInt no AREsp 2454382/SP (04/06/2024)
“Reconhecido o grupo econômico e verificada a confusão patrimonial, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa para responder por dívidas de outra, inclusive em cumprimento de sentença.”
📜 STJ – AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp 2301818/RS (07/03/2024)
“A desconsideração exige a comprovação de abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial; a mera existência de grupo econômico não é suficiente.”
E os tribunais estaduais seguem a mesma linha.
📜 TJ-SP – AI 2287237-25.2021.8.26.0000 (12/04/2022)
“É cabível a desconsideração inversa para incluir no polo passivo sociedades que compõem grupo econômico familiar, especialmente holdings patrimoniais com confusão de bens.”
📜 TJ-SP – AI 2251683-24.2024.8.26.0000 (24/09/2024)
“A desconsideração é cabível quando há blindagem patrimonial destinada a lesar credores, como na constituição de holding familiar e transferência de cotas sem contraprestação.”
🕵️♀️ Como os juízes identificam o abuso
Os tribunais analisam uma série de indícios de confusão patrimonial e desvio de finalidade, tais como:
- Utilização de imóveis da sociedade cofre pela empresa operacional sem contrato;
- Identidade de sócios e administradores nas empresas envolvidas;
- Endereços coincidentes e contabilidade misturada;
- Transferências financeiras sem justificativa comercial;
- Falta de autonomia administrativa e contábil.
Esses elementos, combinados, evidenciam que o patrimônio é um só, ainda que dividido em dois ou mais CNPJs.
🧭 Conclusão: governança é o verdadeiro escudo
Criar uma administradora de bens não basta para proteger o patrimônio familiar.
Sem atividade real, contratos formais e governança jurídica, essa estrutura pode ruir no primeiro problema — e colocar tudo o que foi construído em risco.
Se você deseja blindar seu patrimônio de forma legítima, é fundamental pensar como um ecossistema empresarial, e não como um conjunto de CNPJs isolados.
O jurídico estratégico não serve para “esconder bens”, mas para organizar fluxos, formalizar relações e dar segurança jurídica real às decisões da família empresária.
💡 Dica da especialista
Antes de abrir (ou reabrir) uma administradora de bens, garanta que ela tenha:
- Atividade lícita e operacional;
- Contratos de uso formalizados entre as empresas do grupo;
- Contabilidade independente;
- Regras de governança e atas de deliberação.
Esses cuidados simples evitam a confusão patrimonial e preservam o que realmente importa: a continuidade do legado familiar.
✒️ Por Leidy Benthien
Advogada empresarial e fundadora da LB Assessoria Jurídica.
Ajudando empresários que já erraram — ou que não podem mais errar — a protegerem seus negócios com orientação jurídica clara, firme e acessível.
📲 Acompanhe também no Instagram @leidybenthien
Youtube
Dúvida pessoal?
Vamos conversar!
Artigos recentes
Últimos Comentários
Olá Jonathan, a vistoria não parece ter sido válida, principalmente porque foi realizada muito tempo depois da entrega das chaves.…
Bom dia, aluguei um imóvel durante 2 anos, foi feita a vistoria de entrada mas a vistoria de saída só…
Olá Vitoria, tudo bem? Segundo a Lei de Inquilinato, o proprietário deve manter todos os itens do apartamento apto para…
Boa tarde! Estou com Uma situação um pouco complicada e quero saber Uma opnião jurídica: alugo um Apartamento faz Mais…
[…] ou tentar fazer um acordo num litígio, exige que tenhamos em mente não somente aspectos racionais (dos quais falei…
Deixe seu comentário